23 de mai. de 2007

Virada Cultural

A Virada Cultural, que seria os shows grátis de Karnak e Pato Fu até eu cair nessa história de 24 horas, começou para mim sexta-feira à noite, na cerimônia oficial de abertura ocorrida no hall da prefeitura. Esperava a última enfadonha hora antes de ir embora do estágio quando a chefia chamou todo mundo para descer e acompanhar o espetáculo de dança. Gilberto Dimenstein, Ruth Cardoso e o dono da companhia, Ivaldo Bertazzo viram o grupo, ao som de músicas egípcias, fazerem o trenzinho de carnaval mais sincronizado que já vira – Samwaad II. Nos entregaram colheres de pau e Ivaldo ensinou como usá-las para fazer ressonar as partes do corpo. “Essa colher não deve sair da sua mesa de trabalho.”[i]

Saí tarde, dormi tarde, acordei tarde. Tomei café, comprei o ASA 400 e tentei dormir de novo. Acordei atrasado, tomei banho, estourei uma panela enorme de pipoca, engoli o almoço (às cinco da tarde) e corri pro metrô, tênis velho, duas garrafas d’água, bolachas, documento e caneta – tudo ali. Desci na lotada às 18h. O vento vinha da superfície e espalhava por todo lado os panfletos da Virada. Com um boné do Mickey e uma joaninha na camiseta, parecia uma criança me esperando a Natália.

O público do Alceu Valença, que já ia na segunda ou terceira canção, eram quem esperava pelos show seguintes: reggaeiros do Andrew Are you feelin’? Tosh e da Nação Zumbi e os rappers dos Racionais, mas não só isso. A gente rodou pelo público, até encontrar um engraxate. Merecia a primeira foto. A Natália se postou ao lado do cara e eu, fingindo que a fotografava, clicaria o engraxate. Quando o cliente se virou, baixei a câmera e saiu o flash. Obviamente, o cara sentado, cigarro e copo na mão, percebeu, acenou e gritou para mim. Fiz que não vi e corri dali. As pessoas bolavam seus primeiros baseados da noite sem ressentimento, ao som de Tu vens, La belle de jour e o “mandacaru quando flu-o-ra na seca...” de Luiz Gonzaga.”[iv].

Nos afastamos antes do fim do show para evitar a multidão. Atrás do público, uma fanfarra sexagenária desfilava fantasiada. Não sei como o tocador de tuba ficava em pé sob aquele trambolho. Dali fomos pela Direita até o vale do Anhangabaú, quase se perdendo no meio da fumaça da tenda de Psy. O movimento era o mesmo de um dia de semana normal, inclusive pelas lojas abertas. Mas eram quase oito da noite, sábado, e ninguém tinha pressa ou medo. A praça do Patriarca estava clara sob várias luzes. Uma dupla de pintores criava um painel daqueles do Castelo Ratimbum, que mostrava muito acelerado o pintor da parede branca ao trabalho final. Desistimos de ver as coisas em tempo real.

A gente sabia que havia um palco de dança no vale, mas achamos por instantes que era ali que a tal Trupe do Teatro Mágico ia tocar. Não, a procissão seguia para o Boulevard São João. Conseguimos um cantinho para sentar e esperar, na frente de uma barbearia. Os fãs fantasiados começaram a chegar, continuaram chegando e, bem, não pararam de chegar. Os artistas[ii] surgiram, liberaram mais uma vez suas músicas para quem quisesse baixar na Internet e mostraram os locais onde eram vendidos os discos “com preço de CD pirata!”: cincão. Eles tocaram Tudo é uma coisa só e depois Pratodia, com a inusitada e ruim comparação você é arroz eu sou feijão.

E, ah, não parava de chegar gente.

Quarenta mil pessoas, eles disseram depois. A gente começou a ser esmagado contra a parede e aquela auto-ajuda adolescente laica não valia a pena. Por sorte, um fluxo de gente que também parecia ter se decepcionado com a trupe deixava o Boulevard, e nos infiltramos no meio deles. Uma vez no corredor, não havia muita escolha, andar ou ser pisoteado. Usei o velho truque dos cotovelos que mamãe me ensinou para evitar que me machucasse ou à Natália. Os policiais, nos cantos, riam e tiravam fotos da multidão numa bela demonstração de serviço. Fomos expelidos no Vale depois de maus bocados, praguejando contra o Teatro Mágico – nem de graça – e subimos para o Teatro Municipal. A fila circulava o prédio, não uma mera fila indiana, uma fila de grupos numerosos de pessoas. Sem chance, o riscamos da lista. A entrada lateral estava aberta, dando acesso ao bar e a um oásis de mesinhas e cadeiras confortáveis. Sentamos ali e traçamos as batatinhas da Natália, para enganar o estômago.

Antes das nove, seguimos pela Barão de Itapetininga até a perto do palco, depois a esquerda na Dom José de Barros e atingimos a praça da República pela 7 de abril. Eu não queria passar pelos caminhos escuros e estava voltando, mas um grupo vinha de trás da gente e irrompeu praça adentro, possibilitando que os seguíssemos. O teatro circular já estava lotado e nos apertamos em uma das entradas para ver A melhor fatia ou O que Doroti quer. Haviam sido montadas arquibancadas circulando a cena. Outras pessoas encostaram-se atrás da gente tentando ver. Um jovem se perguntava o que estava acontecendo ali e eu lhe falei o nome da peça.

Atrás de nos, trepado na imensa árvore que um canteirinho encerrava, um outro adolescente, aparentemente bastante alegre em virtude do que tinha bebido, explicava para seus comparsas aqui embaixo o que ele via. Surgiu então, no pé da árvore, uma aparição bizarra. Roupas coloridas, serenidade nordestina e um cabelo branco como neve cumprido e cônico até os ombros e além, todo ondulado. Natália muniu-se da máquina e a gente fantasiou outra pose. A figura pareceu não perceber. Nos bastidores do teatro, um sujeito toma o microfone e com sotaque carioca anuncia a peça. Três garotas, o mesmo vestidinho e os sapatinhos mágicos, representam Doroti – três Dorotis.

O espetáculo circula em torno da crise de identidade das três, que hora reclamam o ser a menina, ora, acusam as outras de o serem, tentando se livrar do estigma. A trilha sonora, Somewhere over the rainbow, toca duas vezes, em versão normal e punk rock. Mas eu não entendi muita coisa, porque o falatório das gralhas – agora era mais de um moleque – em cima da árvore não deixava espaço para muita coisa. Além disso, um distinto senhor na minha frente insistia em fazer piadas sem graça e comemorar cada vez que alguma outra parte do corpo das atrizes aparecia. Um cara na arquibancada desiste, por causa do pessoal gritando atrás da gente, então a Natália consegue uma beira para sentar e eu, para me encostar.

Terminada a peça, o cara das piadas, se vira com cara de bravo. “Vou tomar uma cachaça”, cospe ele, empurra várias pessoas e sai correndo. Dali corremos para o palco da Barão, onde Serguei, o Divino do Rock, batia novos recordes de idade. Ele terminou com Born to be wild e With a little help from my friends, na versão woodstockiana do Joe Cocker. Quando chegamos, a média de idade do público diminuiu bastante, mas mal pudemos ver o Divino. Saímos dali para a rua 24 de maio, rumo ao Teatro Municipal. Na José de Barros há uma churrascaria gaúcha. Ironicamente, cruzamos com dois amigos, um com a camisa do Internacional, o outro, com a do Grêmio.

tsuzuku...

notas:
[i] Ótima idéia, claro, mas a colher foi para a gaveta da cozinha.
[ii] E eles personificam bem essa palavra...
[iv] No original Dominguinhos erroneamente.

3 comentários:

Anônimo disse...

Eu lí só a metade...ah, o texto tá muito grande e tá tarde...

Minha virada cultural (sim, aqui teve uma):
Entrei na biblioteca, pela porta do lado porque estavam colocando um sensor de presença na porta principal (ainda não descobri qual a vantagem disso, já que ela continua tendo de ficar sempre aberta), fui procurar livros sobre mobiliários urbanos e achei um folhetinho com a programação da Virada Cultural.
Olhei, olhei e olhei e só me interessei por 3 programas. 2 deles eram o cinema, mas iam passar de madrugada e no Parque do Povo (é uma praça comprida), tudo bem que fica a 2 quadras de casa, mas sair de madrugada pra ver filme...é melhor alugar nas quartas na locadora da rua de cima, que custa 70 centavos; o outro era uma orquestra daqui de Prudente, também no Parque do Povo, 8 horas da manhã de domingo. Legal! Convidei minha amiga: "_Vamos?" "_Vamos!".
Chegou sábado meia-noite fui numa festa numa república bem longe de casa e voltei às 5 da manhã, quebrada.
Acordei domingo meio-dia.


(mas na festa eu tive a confirmação de que aquela menina é lésbica...bem que eu desconfiava daquela japonesa...)

andré.albert disse...

1) xote das meninas é do luiz gonzaga, não do dominguinhos
2) cadê essa colher? fiquei curioso
3) obrigado por disseminar a citação, embora tenha faltado o "sonora"

andré.albert disse...

pode usar a citação a vontade. só salientei que a versão completa é "auto-ajuda adolescente laica sonora" (se for usar, use inteira... hehehehe).

da verificação, você diz do couch surfing? se sim, é sim bem chata.